Fonte: BNC
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Há um detalhe incômodo, mas decisivo, no debate sobre a BR-319: ela já existiu. Não como promessa, não como maquete, não como potencial estratégico, mas como rodovia viva, operante, com fluxo regular de passageiros, encomendas e histórias. Durante anos, Manaus, capital do estado do Amazonas, esteve ligada ao restante do país por uma estrada que funcionou, com segurança e conforto aos usuários.
No final de 1972, segundo o Eng. Civ. Orlando Holanda – que foi diretor do extinto Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas (DER-AM) –, duas frentes de terraplenagem se aproximavam pela BR-319.
A primeira seguia de Humaitá (AM), a partir do entroncamento com a BR-230 (Transamazônica), no km 656,4, até o Rio Matupiri, no km 340 (entrada para Manicoré-AM). A segunda partia do Rio Tupana, no km 178, também em direção ao Rio Matupiri. Foi nesse ponto que as duas frentes se encontraram, dando início ao tráfego interestadual entre as capitais Manaus (AM) e Porto Velho (RO).
Em 27 de março de 1976, a Rodovia BR-319 foi oficialmente inaugurada, passando a se chamar, a partir de 4 de junho daquele ano, Rodovia Álvaro Maia. Havia revestimento asfáltico em toda a sua extensão (885 km), a partir de Manaus, capital do Amazonas, até Porto Velho, capital de Rondônia.

Ônibus da Viação Motta na década de 1970, durante as primeiras operações regulares rumo a Manaus. A empresa foi pioneira no uso da BR-319 para transporte interestadual, conectando o Amazonas ao Centro-Sul do país. Fonte: Acervo da Associação dos Amigos e Defensores da BR-319 (AAD-BR-319).
Do Rio de Janeiro a Manaus
Em 1973, como mostra o registro abaixo, a Viação Motta inaugurava sua linha pioneira até Manaus. Em 1976, a empresa de ônibus Andorinha, com sede no interior de São Paulo, iniciou a operação da linha de ônibus Rio de Janeiro-Manaus, com um total de 4.538 quilômetros e tempo estimado de viagem em torno de 3,5 dias (85 horas). Outros operadores, como a Eucatur, por exemplo, viriam depois. Havia viagens diárias, conexões com Cuiabá, Campo Grande, Porto Velho e São Paulo.

Ônibus da Viação Motta em operação na BR-319 na década de 1970. A partir de 1976, com a inauguração da rodovia, havia linhas regulares entre Manaus e o sul/sudeste do país. Fonte: Acervo da Associação dos Amigos e Defensores da BR-319 (AAD-BR-319).
A rodovia cumpria plenamente sua função estratégica, permitindo que empresas diferentes operassem rotas longas e regulares ao longo de uma via totalmente asfaltada. O trajeto incluía sete balsas, paisagens amazônicas, e a sensação de que o Brasil, enfim, chegava à Amazônia não só pelos rios e pelos discursos oficiais, mas pelas rodas de ônibus que cruzavam quatro mil quilômetros até o coração da floresta. Durante algum tempo, isso foi rotina e não aventura.
A polêmica que se arrasta há mais de vinte anos – tomando 2005 como marco – sobre a recuperação da BR-319 costuma ignorar essa memória concreta. Ambientalistas, uns por desconhecimento histórico, outros por pura desonestidade intelectual, repetem a narrativa de que se trata de “abrir” uma nova estrada na Amazônia.
A questão não é essa. O que está em disputa não é a criação de um eixo inédito, mas recuperar uma infraestrutura que já existiu, já funcionou e já integrou territórios, com impactos sociais e econômicos amplamente documentados.

Apenas para passear
Em 2023, a própria ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, afirmou “que não se faz uma estrada de 400 quilômetros no meio da floresta virgem apenas para passear de carro, se não estiver associada a um projeto produtivo”. Ela omite, contudo, que a rodovia já existe e permanece trafegável durante o ano todo, mesmo no inverno amazônico, período de altos índices pluviométricos na região.
Ainda em 2009, há 16 anos, o ex-deputado e professor da UFAM Eron Bezerra, em um artigo de opinião intitulado “BR-319 x Santuarismo”, foi categórico ao afirmar:
“A cada exigência atendida surge outra de conteúdo semelhante, até se esgotarem todas as exigências técnicas. A partir daí, os questionamentos assumem conotação abertamente ideológica, como a recente declaração do ministro Carlos Minc de que não concederá licença ambiental para a recuperação da BR-319”.Eron Bezerra, ex-deputado estadual, hoje professor da Ufam
O abandono
O abandono – que atravessou governos de direita, centro e esquerda, há mais de trinta anos – transformou a BR-319 numa ruína material e simbólica: uma estrada que, apesar da sua trafegabilidade precária, continua ativa, mas é vista por alguns ambientalistas como uma rodovia fantasma, uma política pública suspensa no tempo.

E, nesse vazio, prosperou um debate enviesado, no qual ambientalistas defendem uma floresta intocada, enquanto grande parte da população do Amazonas, de Roraima e de Rondônia defende uma estrada concreta, aquela mesma que já nos conectou ao país de maneira rápida e eficaz, com conforto e segurança, sendo totalmente asfaltada.
EIA-RIMA
É importante destacar que, em 2007, os ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes, por meio de seus braços operacionais – IBAMA e DNIT – firmaram um Termo de Acordo e Compromisso, reconhecendo que a obra de reconstrução do segmento rodoviário central da BR-319 (Trecho do Meio, do km 250,7 ao km 656,4) é potencialmente causadora de significativa degradação ambiental. Assim, por força do art. 225, § 1º, inciso IV, da Constituição Federal, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) tornou-se obrigatório.
O referido EIA foi contratado pelo empreendedor (DNIT) e aprovado em julho de 2022, pelo IBAMA – 15 anos após a exigência – com a consequente expedição da Licença Prévia (LP) n. 672/2022. Com isso, houve o reconhecimento da viabilidade ambiental do empreendimento.
Além do EIA e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o Ministério dos Transportes, por meio do GT da BR-319, criado pela Portaria n. 1.109, de 16 de novembro de 2023, concluiu em junho de 2024 que a repavimentação da Rodovia BR-319 é viável técnica e economicamente.
Mesmo assim, os efeitos de Licença Prévia (LP) foram suspensos por força de decisão judicial, em ação civil pública proposta pela ONG Observatório do Clima, impedindo o avanço nas tratativas voltadas para a repavimentação.
Considerações finais
O fato incontornável é decisivo: não estamos discutindo se a BR-319 deve existir, mas se ela deve continuar abandonada. Reduzir o debate à caricatura “estrada versus floresta” é negar a complexidade do território, ignorar as populações que vivem ali e esquecer que a Amazônia também depende de políticas públicas de mobilidade, integração e presença do Estado.
A não recuperação da BR-319 não impede o desmatamento, mas impede, de forma concreta, o pleno alcance da cidadania. O desmatamento não depende de estrada: avança por meios logísticos já consolidados: barcos, aviões clandestinos, ramais ilegais, grilagem. O que não avança é a vida daqueles que permanecem isolados.
As imagens dos ônibus que apresentamos neste texto, com o registro de diferentes companhias e diferentes décadas, deveriam ser suficientes para deslocar o eixo do debate. A BR-319 não é um projeto novo: é um direito antigo, suspenso.
A pergunta que fica, meio século depois daquelas travessias, é outra: até quando o Brasil vai tratar a Amazônia como exceção geográfica e política? Até quando vai preferir o abandono à responsabilidade? Recuperar uma estrada não é destruir a floresta. O que destrói a floresta, como a história mostra, é o Estado ausente.
*Sociólogo
**Engenheiro civil e advogado.
Arte: Gilmal



